O novo filme da Netflix engrandece uma discussão complexa ao revelar o incômodo aplauso de mulheres que veem no crime uma forma de reação; Confira a opinião da psicóloga Denise Feitosa, especialista em comportamento criminal.
Desde que a Netflix divulgou a primeira foto de Lorena Comparato como Elize Matsunaga, para o novo longa-metragem ficcional dirigido por Vellas e com roteiro de Raphael Montes e Mariana Torres, o que deveria ser apenas um anúncio de produção se transformou em uma poderosa discussão nas redes sociais. Anunciado no dia 29 de julho, o longa-metragem ainda não tem data de estreia.

Enquanto a atriz Lorena Comparato e a equipe de produção são aplaudidas, de um lado, pela coragem de abordar um dos crimes mais chocantes do país, de outro há quem se incomode com esse tipo de filme. O debate sobre a possível glorificação de criminosos ganhou força recentemente, reacendido pela série ‘Tremembé‘ (Prime Video), em que Elize é interpretada por Carol Garcia.
No entanto, o que chama atenção é a manifestação de um profundo e alarmante sentimento de identificação por parte do público feminino. Tanto em comentários na página da atriz Lorena Comparato quanto em fóruns online, um coro de vozes femininas se levanta com uma frase que provoca e choca: “ela não matou, ela reagiu”.
Essa reação não é um elogio ao filme, mas sim uma reflexão sobre a exaustão, o medo e a violência que muitas mulheres enfrentam diariamente. O argumento de que “todo dia homem mata mulher” é, por vezes, usado para contextualizar a ação de Elize, transformando o crime em um ato de justiça, ou de defesa.
O que leva tantas mulheres a encontrarem um senso de redenção em uma história tão trágica e brutal? Por que a figura de uma mulher que cometeu um assassinato se torna, para alguns, um ícone de “reação”?
O “estranho familiar” e a arte da confrontação
O filme nos convida a mergulhar na complexa mente de Elize, não para aplaudir suas ações, mas para entender as falhas de uma sociedade que pode levar alguém ao extremo. Para a psicóloga Denise Feitosa, Mestra em Psicologia e Saúde e Coordenadora do Curso de Psicologia da Universidade Brasil em Fernandópolis, o gênero true crime atua como um espelho.
“A arte sempre foi uma forma de elaborar o indizível,” explica Feitosa. “Quando assistimos a um true crime como o de Elize Matsunaga, entramos em contato com o lado obscuro da experiência humana. Gosto de pensar no que Freud chamava de ‘o estranho familiar’: aquilo que nos assusta justamente porque, em alguma medida, nos habita.”
Segundo a especialista, o incômodo provocado pela narrativa não é acidental. “Ao narrar histórias reais de violência e dor, a arte nos convida a confrontar questões sobre trauma, desamparo e os limites da condição humana. O incômodo que surge é justamente o que provoca reflexão“, afirma. Feitosa conclui que “o true crime pode funcionar como um instrumento educativo e terapêutico coletivo, na medida em que expõe os efeitos da violência doméstica, do abandono emocional e das desigualdades de gênero.”
A exaustão coletiva: um sintoma social
O aspecto mais perturbador do debate reside na identificação de parte do público feminino com a figura da criminosa. Nos comentários das redes sociais, essa identificação se manifesta de forma explícita, como demonstram estas reações:
Perfis femininos e anônimos:
“A Elise, não agiu assim, ela REagiu” (fundo musical da Britney) 🔥
“Chocou o Brasil pq foi uma mulher! Homens fazem isso todos os dias ! No Brasil são 4 mulheres por dia”
“Torcendo pro filme mostrar fielmente o que a Elize passava nas mãos do Matsunaga. Ela não agiu assim, ela reagiu assim.👏🏻”
“É aquilo né? É melhor ser Matsunaga do q Samudio, da cadeia vc sai, de debaixo de 7 palmos não”
“Sim, foi brutal o esquartejamento. Mas foi ‘pior’ porque ela é mulher né minha gente?? Pq se fosse o contrário, seria só mais um, não renderia nem filme.”
“Impossível fazer um filme pra cada crueldade de homens contra mulheres. Tem q virar filme mesmo, de tão raro!”
“Chocou pq matou um homem. Mulheres são assassinadas diariamente e ninguém liga”
Comentário de aparente perfil masculino:
“Desculpa mas eu amei o que a Elize fez, deveria ter mais Elizes assim 👏🏼🙌”
Denise Feitosa analisa esse fenômeno como um sintoma do esgotamento feminino generalizado. “Quando algumas mulheres veem em Elize uma ‘reação’ e não um crime, estamos diante de um fenômeno psíquico coletivo,” afirma a psicóloga. Ela observa que esse é “o mesmo tipo de identificação que se observou em discussões sobre a série Maid (Netflix)”.
Feitosa aponta que a exaustão feminina tem sido estudada em diversas pesquisas sobre fadiga emocional, como o “trabalho invisível” que consome as mulheres. “O caso de Elize desperta ressonância justamente nesse ponto: muitas mulheres enxergam ali, ainda que inconscientemente, a expressão de um limite psíquico que conhecem — o de uma vida inteira tentando conter, compreender e suportar,” explica. “Não se trata de justificar o crime, mas de reconhecer o sintoma social que ele revela: uma exaustão coletiva feminina diante da violência, do abandono e da ausência de escuta.”
Essa dinâmica se aprofunda na dor individual que se torna uma metáfora social. Segundo a Dra. Denise, “A figura de Elize se torna simbólica porque, por trás do ato brutal, há uma narrativa de dor, submissão e desespero — sentimentos que muitas mulheres reconhecem em si mesmas”. Ela completa: “Elize representa, inconscientemente, a mulher que rompe o ciclo da submissão — ainda que por um meio trágico. A dor dela se torna metáfora da dor de muitas que sofrem caladas. Na clínica, é comum observar que o ser humano se identifica menos com o ato e mais com a emoção que o antecede” encerrou.
A fronteira entre empatia e absolvição
Diante de tamanha complexidade, surge a questão central: como a sociedade pode desenvolver a empatia pela história de vida de alguém sem que isso se torne uma justificativa para a violência?
“Ter empatia pela história de alguém não é concordar com o que ela fez. É compreender os processos que a levaram até ali,” ressalta Feitosa. “Na psicologia, trabalhamos com a ideia de compreensão contextual: ninguém nasce assassino, violento ou destrutivo; essas formas surgem de combinações entre traumas, vínculos precários e contextos sociais adoecidos.”
O exemplo de Andrea Yates, que matou os filhos durante um surto psicótico pós-parto nos Estados Unidos, é usado por Feitosa para ilustrar essa mudança no olhar social: “Quando sua história foi revelada, marcada por isolamento, depressão e falta de apoio, o olhar social mudou: não para absolvê-la, mas para compreender e prevenir.”
O eco da impotência e a fantasia reparatória
A frase “todo dia homem mata mulher”, frequentemente usada no debate sobre Elize, é para Denise Feitosa o prenúncio de um fracasso sistêmico.
“A repetição dessa frase expressa mais do que indignação, ela é o eco de uma impotência coletiva,” analisa Feitosa, citando o dado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024) de que “uma mulher é vítima de feminicídio a cada sete horas” no Brasil.
Segundo a psicóloga, quando as pessoas buscam narrativas em que “a mulher reage”, é uma tentativa inconsciente de restaurar algum senso de justiça. “É o que a psicanálise chamaria de fantasia reparatória — o desejo de que, em algum lugar, o sofrimento encontre resposta”, afirma. Esse desejo também denuncia o fracasso social: é o Estado que não protege, é a justiça que demora, são as redes de apoio que falham”, concluiu a especialista em comportamento criminal.
Nesse contexto, Elize se torna um símbolo paradoxal, não de heroísmo, mas de um sistema que permitiu que a dor virasse violência. O filme da Netflix, mais do que reviver um crime, nos força a confrontar o fracasso coletivo que está subjacente a essa exaustão social.

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