Há quem diga que não se produz arte independente no coração do Brasil. De fato, há desafios, mas o maior deles é a ignorância — qualidade de quem ignora — o leque de artistas naturais de Mato Grosso. Entre os nomes da cuiabania, é possível afirmar que BADAN é um dos mais magnéticos. Nunca em Cuiabá mas sempre se inspirando na terra natal, ela evoca questões existencialistas em qualquer melodia e, agora, promete arriscar no pop e no afrobeat.
Mesmo a um oceano de distância, BADAN não esquece o Brasil Profundo onde foi criada. A “criança do mato”, como se referencia em uma de suas músicas, cresceu na capital do calor cercada por uma família de artistas, mas partiu para Portugal há sete anos em busca de sua arte. Após esse período que remete ao número da perfeição, a cuiabana diz estar produzindo seu trabalho “mais pop, mais maduro e mais seguro” até agora. Seu terceiro álbum, em produção em Lisboa, foi descrito ao nosso expediente como “diabólico” pela própria artista, que não poupou detalhes sobre o processo criativo.

BADAN tem grande apreço pela imprevisibilidade. Com formação em teatro no Rio de Janeiro — onde também iniciou sua carreira musical —, a cantora escreve poesia, é atriz premiada e artista plástica por herança familiar. “Eu sempre pintei quadros”, conta. Na atuação, a entrevistada foi premiada Melhor Atriz no Festival Cine-PE 2018, pela sua interpretação da protagonista no curta-metragem ‘Theodora quer dançar’. Entre shows que unificam todos os seus dotes artísticos de forma magnética e catártica, BADAN vive histórias que inspiram seu trabalho — e também divertem.


Na música, já experimentou de tudo. Seu primeiro álbum, Erupção (2019), que marcou sua estreia em estúdio, traz uma sonoridade crua e experimental, com letras lúdicas e íntimas, mas atravessadas por poesia. “Hoje eu vejo que a viola caipira me atravessou muito. Lembro que ouvia muito Almir Sater, o poema do homem sertanejo. Eu acho que sou um pouco isso. No primeiro álbum tinha muito essa coisa do Cerrado, das histórias da minha vida aqui”, relembra. Já o segundo trabalho, Arranjo Ignóbil (2022), apresenta uma estrutura mais sólida, fortemente influenciada pelo rock, mas ainda carrega o espírito pantaneiro de quem cresceu ao som das violas — e a poesia declamada de quem vive entre artistas.


Cantando rock, pop ou experimental, as letras da cuiabana são marcadas por suas vivências como uma alma livre, quase nômade. “Me considero uma mulher que viveu muito a rua, os bares, as esquinas, e que teve que aprender a estar em cada cidade, em cada país, muitas vezes sozinha”, justifica. Antes dos estúdios, BADAN surgiu como artista de rua, primeiro vendendo poesias no Rio de Janeiro e depois cantando suas músicas autorais em Lisboa. Ao descrever seu início como genuíno e cru, ela reconhece que a ingenuidade daquela fase foi o que a tornou mais madura hoje. As oportunidades, muitas perdidas pelo nervosismo, moldaram uma mulher selvagem e preparada para a guerrilha.


Transformada por si mesma, BADAN fala que jamais cogitou produzir um trabalho fundamentado no pop ou no afrobeat, mas que agora se vê realizada em um projeto que se mostra inédito para si e para seu público. De acordo com ela, sua vivência no hip hop, tanto na Roda Cultural de Botafogo no Rio, quanto na Batalha Carcaverso em Lisboa, se soma às suas raízes no xaxado e no repente. “Se a gente for ver, o xaxado e o repente têm uma ligação muito forte com o hip hop: a batida embaixo e a palavra em cima, falando do que a gente vive. E é isso que eu faço nas minhas canções”, diz ela. “Esse álbum novo nasce desse encontro. Não foi algo planejado, aconteceu naturalmente” finaliza.


Badan com integrantes do ‘Carcaverso’, movimento criado pelos artistas residentes em Carcavelos (Portugal). Foto: Acervo pessoal
Em suas últimas 48 horas no Brasil antes de retornar para a Europa, BADAN recebeu nosso expediente em uma casa repleta de obras de Clóvis Irigaray e Adir Sodré. Inspirada pelas raízes artísticas de sua terra natal, ela abriu a mente e o coração ao falar sobre seu trabalho e revelou os próximos passos de sua carreira.
Há uma diferença entre o que você absorve da cena mato-grossense e o que vem de fora?
Cara, eu acho que sim. Se eu pensar em artistas específicos ou no lambadão, por exemplo, é algo muito forte, e ouvir esse som na guitarra é muito foda. A Izafeh também tem uma voz maravilhosa. Existe, sim, uma diferença que tem a ver com esse “Brasil Profundo”, que é como percebo muitos desses artistas mato-grossenses que vivem da própria arte. Eles vivem essa resistência de continuar fazendo música num país em que a cultura nem sempre tem apoio, e onde investir em um clipe ou em um álbum exige muito. A maioria é artista independente. Agora, na musicalidade, o Brasil tem uma riqueza enorme, especialmente na percussão e na maneira de transformar poesia em som. Eu percebo que a diferença [com a Europa] está justamente na relação com a palavra, na forma como tratam a poesia, seja ela cantada ou falada.
Entre o leque de artistas que você se inspira, quais referências são mais fortes nesse momento criativo que deriva o terceiro álbum?
Tenho escutado muito a Marina Sena, Itamar Assumpção e, principalmente, a Tetê Espíndola. Toda vez que eu volto [para Cuiabá] eu escuto muito ela falando da natureza, falando dessa vida no Cerrado que me inspira muito no novo álbum. Também tem muita inspiração do rap, do beat, do hip hop, porque, querendo ou não, eu estive muito nas ruas, que me ensinaram muito. A viola caipira é outra paixão minha. Ainda é um sonho fazer um trabalho voltado a isso. [No novo álbum] a gente tá tentando mesclar um pouco de tudo, mas também colocando instrumentos que tragam essa raiz daqui e que acabam me inspirando nas músicas.
Tenho escutado cantoras como Flo Morrissey, Olivia Dean, Izafeh e a Paula Shaira. O trampo da Paula é muito foda. Também tem cantoras brasileiras como a Duda Brack, a Júlia Vargas, a Fitti e a Daira Saboia, que é uma puta cantora do Rio. Conheci também a Mastrobiso e a Natália Lebeis, que é uma amiga. Eu acabo me inspirando nisso tudo, e toda vez que venho pra cá procuro conhecer mais esses artistas que estão vivendo aqui.
Seus álbuns “Erupção” e “Arranjo Ignóbil” têm características muito próprias. Como você enxerga a evolução entre eles e o que podemos esperar do terceiro disco?
Eu acho que eu estou aprendendo a cantar, porque é um aprendizado constante. Mas uma coisa muito importante pra mim nesse percurso foi entender onde a minha voz iria, e também acredito que as experiências que eu vivi transformaram a minha voz, sabe? Tanto a dor quanto a alegria chegam até mim quando eu estou cantando num lugar em que eu consegui manuseá-la [a minha voz].
E acho que nesse terceiro álbum eu estou um pouco mais madura por conta das minhas vivências e também por saber lidar com isso: todo esse caos e delícia que é estar vivo. Eu aprendi também a colocar essa voz – essa dor e essa alegria – no lugar onde ela deve ser colocada. Então eu acho que a diferença de tudo é também a minha confiança no meu trabalho, porque já foram vários anos, tanto nas ruas quanto em trabalhos profissionais grandes que eu tinha que estar preparada, e que eu aprendi a estar preparada, e agora eu me sinto mais segura na minha arte.
Me conta uma coisa. Você veio esse mês para Cuiabá descansar e recarregar. Tá conseguindo?
Então, eu vim ver minha família, mas sempre acaba sendo buscar referências, né? Porque quando a gente tá aqui, como artista, a gente nunca descansa, né cara? Tudo é uma inspiração; todo encontro, toda pessoa que você conhece e cruza a rua. Agora eu acabei de voltar do Pantanal, passei alguns dias lá e foi uma super inspiração poder voltar pra terra onde eu também fui criada, sabe? E poder olhar aquela natureza e me modificar também e pensar como aquela beleza me atravessa foi muito inspirador. Vir pra cá vai ser sempre inspiração porque o artista precisa de algo pra contar, né? Então, se eu venho pra cá é porque eu preciso do que eu levo daqui. Eu tô voltando pro meu trabalho [em Lisboa] muito mais iluminada de amor e mais forte com essa raiz de todo mundo que me atravessou, seja família, sejam amigos, sejam artistas que eu tô vendo ao longo desse um mês que eu tô no Brasil.
Quais marcas da sua vivência durante esse um mês em Mato Grosso entrariam no seu próximo álbum?
Eu acho que entraria a selvageria do Pantanal, a flecha lançada do Cerrado e o abraço quente de uma terra saborosa.
Depois de experimentar tantos estilos, por que agora apostar no Afrobeat como base?
Sempre foi meu sonho cantar no beat, porque eu acho que isso leva a minha música pra outro lugar, para além do violão. E eu sempre quis largar um pouco o violão. Como eu não sou a maior instrumentista do mundo, isso me dá muito espaço pra criar e pra brincar com as palavras e com o ritmo do jeito que eu tô fazendo [nesse álbum]. Meu primeiro instrumento foi a percussão, então eu sou apaixonada pelo ritmo. Esse pop que eu estou trabalhando com o Renato Parmi, o meu produtor, vem muito desse lugar de bailar a vida e de fazer essa limonada mesmo, esse suco que a gente [o brasileiro] tem.
Tá sendo muito massa, porque está sendo produzido de uma maneira que eu nunca tinha experienciado. A gente chega no estúdio, eu mostro uma canção pra ele, ele coloca o beat e a música já se transforma.
Vai ser algo tipo Vagamundo?
Acredito que será um pouco diferente, porque vai ter essa coisa do afro que eu ainda não tinha experimentado. Vai ser mais dançante, porque o afro é assim, e o Vagamundo foi um hip hop meio dançado, mas agora a gente tá apostando mesmo nessa sonoridade dançante com a poesia também dizendo algo, sabe? Um tesão pela vida mesmo.
E como você e o Renato Parmi se conheceram e decidiram produzir um álbum?
Eu conheci o Renato Parmi quando eu estava tocando em Lisboa nos comboios. Eu fiquei com o contato dele, se passou um tempo e eu reencontrei com ele e falei que a gente tinha que produzir alguma coisa juntos. Depois, passou mais um tempo e um dia ele falou “Eu acho que a gente tem que trabalhar juntos” e eu falei “Cara, sério?” [risos] e tá sendo incrível. Ele é um cara muito bom mesmo. Eu estava no estúdio mês passado e do nada apareceu o Julian Marley [filho do Bob Marley] com a banda dele. Eu acho que o Parmi é uma estrela que muita gente vai conhecer – mais ainda – porque ele tem uma bagagem incrível.
Foi o destino que fez a gente se encontrar porque o novo álbum já era o que eu queria, mas ele [Renato Parmi] trouxe o que eu estava sonhando. Eu, como artista, posso dizer que estou realizando um sonho de estar me encontrando numa sonoridade legal.
Mantendo o mistério, como você definiria em uma palavra a atmosfera desse álbum?
Diabólico. [Risos].
Você transita entre as artes plásticas, música e teatro, e os seus shows são realmente dramáticos. Como você vê essa intersecção?
Isso tudo é uma grande brincadeira. Eu me sinto livre quando eu estou vivendo essas essas experiências e trazendo o público pra viver comigo, porque não é algo só meu. É uma catarse em união. Eu acho que essas coisas perdem seus nomes e perdem a razão. Não tem explicação. Pra mim, poder misturar tudo, experienciar aquilo e ver o público curtindo e se desprendendo de uma máscara social, através da arte, é incrível e genuíno. Eu acho que as pessoas se encontram e se despedem. Cada show e cada projeto é um novo mergulho.
Você tem uma maneira muito própria de interpretar o mundo. Tem alguma música com um valor sentimental muito significativo que você queira citar?
Tem uma música no álbum Erupção que é o Choque na Véia. Eu fiz pra minha avó que foi uma grande pintora mato-grossense e teve alguns problemas psíquicos. “A véia da choque… Fez efeito a sua falta de toque” [cantarolando]. Também teve Bicho do Amor que é a música que eu fiz pro meu amigo Luiz Paulo que faleceu em um acidente de carro. Essa música entrou no filme português Chuva de Verão e casou muito com a história do filme, que era sobre um personagem que também faleceu em um acidente. Essa música é muito importante pra mim porque graças ao Luiz Paulo e a família dele que eu pisei em Portugal. Quando o Lu sofreu o acidente e partiu desse plano, a mãe dele me chamou pra fazer o caminho de Santiago de Compostela. Esse é um caminho muito forte que muda a história de muita gente, e tem muitos artistas como a própria Rosalía, que já fizeram ele. Se não fosse isso, eu não moraria em Portugal, porque eu fui só fazer o caminho e fiquei em Lisboa e estou lá há 7 anos. Essa canção Bicho do Amor eu fiz pra Lilian também [a mãe do Luiz] que me falou uma vez “É meu preferido, o perdi” [cantarolando]. “Por que a gente sempre perde as pessoas preferidas?” e aquilo ficou na minha cabeça.
Animada com seu futuro, BADAN revelou ainda a produção de um segundo projeto. O single, seu próximo lançamento, já está encaçapado e se chama “Cartas para Inanna” (confira a capa abaixo). Adentrando na letra da música, a artista conta que conhece sua bissexualidade desde a infância, mas apenas na maturidade entendeu sua orientação sexual e que seu primeiro – e até então único – relacionamento com outra mulher é o que inspirou a composição. Ao aprofundar em seus sentimentos, a cantora, que é pisciana com lua em áries, desabafa que foi uma paixão íntima e intensa, mas que a distância geográfica, o Oceano Atlântico, induziu o término.
“É sobre uma relação que teve que acabar porque a minha vida estava em Portugal e a pessoa que eu fiz essa canção estava no Brasil” disse. A faixa, descrita como melancólica e dolorosa, vai na contramão do álbum que a sucede e é produzida por Raul Misturada. Gravada em Lisboa, Cartas para Inanna conta com Meno Del Picchia no contrabaixo acústico e o Fernando Baggio na bateria. A música será lançada ainda este ano.

Alteração de resposta
Após alguns dias, BADAN enviou uma mensagem ao editor a respeito da pergunta “Como você definiria em uma palavra a atmosfera desse álbum?“. De acordo com ela, um termo mais elaborado seria “Diabolicamente sensorial”.

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